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OUTRAS PALAVRAS

Teatro vivo em São Paulo
Iná Camargo Costa

 

Resumo da luta

O movimento Arte contra a Barbárie surgiu oficialmente no dia 7 de maio de 1999 para lutar contra a situação criada pelas leis de renúncia fiscal, em particular a Lei Rouanet e suas versões paulistas, estadual e municipal. Seu Manifesto perguntava pelo valor da cultura no país, tomando como referência sarcástica o orçamento do Ministério da Cultura e propondo a luta por políticas públicas para a cultura.

O movimento congregava basicamente grupos que faziam um tipo de teatro que não agradava aos profissionais de marketing que decidem sobre a destinação das verbas da renúncia fiscal. Estas, obviamente, passaram a fazer parte dos orçamentos de publicidade das empresas, que além do mais dispõem de veículos muito mais eficientes do que o teatro para este fim. Ainda mais grave que isto, os espetáculos destes grupos não obtinham um retorno mínimo de bilheteria que assegurasse a sua continuidade como mercadoria de tipo artesanal de modo autônomo, isto é, independente dos patrocínios do grande capital.

Mesmo nos casos daqueles que se dispunham a se lançar no mercado, isto é, a contar apenas com o retorno de bilheteria, generalizou-se a constatação de que não há demanda de mercado ou, para dizer a mesma coisa, não há mercado para o tipo de trabalho que fazem. E nos últimos dez anos a experiência só tem confirmado estas avaliações.

A própria multiplicação do número dos grupos que lutam pelo direito à existência já é expressão do encolhimento do mercado de trabalho (fenômeno mundial), inclusive no ramo da produção de mercadorias culturais. O mais eloquente dos exemplos recentes é o desmentido cabal das promessas feitas pelos arautos da TV por assinatura e a cabo, quando de seu lançamento entre nós: ao contrário da multiplicação dos postos de trabalho para artistas e técnicos e da  prometida abertura de canais para veiculação da produção independente, o que tivemos foi nova inundação de lixo cultural mundial, com destaque para o norte-americano (99% da produção segundo estimativa de Woody Allen).

Estas informações deixam claro que os grupos de São Paulo percebem estar reduzidos à luta contra as malfeitorias do mercado e das mercadorias não mais por postura ideológica, como outrora foi o caso de militantes de partidos de esquerda, mas por mera questão de sobrevivência em meio ao estado de coisas criado pelas contradições e pelo encolhimento cada vez mais visível do sistema capitalista (a crise oficializada em 2008 ainda não se apresentou por inteiro, mas ninguém perde por esperar).

Políticas públicas contra a renúncia fiscal

A bandeira de luta por políticas públicas para a cultura no Brasil é resultante de uma análise muito precisa do discurso neoliberal em confronto com as práticas inauguradas por Collor, intensificadas por Fernando Henrique e agora incorporadas por Lula. As teses liberais do “estado mínimo”, da eficiência administrativa, etc., encobrem um movimento de dupla direção: o estado abandona seus compromissos com previdência, saúde, educação, cultura – que correspondem a direitos consagrados na constituição (de 1988, a “cidadã”) e atendem às necessidades e demandas dos trabalhadores e da população mais pobre –, redirecionando as verbas destes setores aos que servem mais diretamente aos interesses do capital, representados em ministérios como os da Fazenda, Planejamento, Agricultura, etc. A própria política “intocável” de superávit fiscal nada mais é que a declaração de que os interesses do capital financeiro estão acima de todos os demais. Leis de renúncia fiscal fazem parte deste processo. Elas consistem em transferir ao próprio capital a prerrogativa de definir políticas para a arte e a cultura. (Não vem ao caso analisar a coreografia da mediação do Estado que confere aos projetos uma espécie de selo de qualidade sem o qual os proponentes nem podem dar início à peregrinação em busca de patrocínio).

Dadas estas constatações, o Arte contra a Barbárie assumiu o desafio de lutar contra essa política no próprio terreno definido como o único legítimo pelo discurso liberal: o poder legislativo (com a clara disposição de correr todos os riscos implícitos). Descobrindo uma brecha, o movimento mostrou na prática que ela pode ser explorada. Sua vitória na Câmara Municipal de São Paulo, onde  o Programa de Fomento ao Teatro foi aprovado por unanimidade em 2001, além de assegurar um ganho material, tem força simbólica neste sentido. O ganho material é óbvio: desde que a lei entrou em vigor, cerca de 80 grupos já foram contemplados e é certo que muitos de seus integrantes já teriam desistido da luta pelo teatro que querem fazer se não tivessem recebido essas verbas. E desistiriam premidos pela simples necessidade de pagar as contas no fim de cada mês. É preciso insistir neste ponto: a luta é apenas pela  sobrevivência de produtores de um tipo de arte que não se submete às determinações mercado, por seu direito de existir como artistas que buscam expandir e ampliar seu repertório de temas e formas de expressão teatral.

Para dar concretude às afirmações acima, serão apresentados, em vôo ligeiro, alguns dos trabalhos mais significativos de dois grupos exemplares do processo vivido nos últimos dez anos. O Folias d’Arte, por ter sido um dos maiores impulsionadores do Arte contra a Barbárie e o Engenho Teatral, por seu empenho na proposição e implementação da Lei de Fomento ao Teatro em São Paulo.

 

Folias: de Babilônia a Orestéia

Na última década, o Folias criou basicamente espetáculos que refletem sobre nossos problemas e misérias, destacando sempre a função da arte e do artista. Babilônia, por exemplo, estreou em 2001 e ficou em cartaz até maio de 2002: dialogando com as cenas que ainda hoje podem ser vistas na região de Santa Cecília, mostra que o processo de exclusão, por mais sutil que pareça no caso dos artistas e trabalhadores intelectuais, também nos atinge e nos oferece como horizonte a vida de sem-teto. Todos fazemos parte de um processo que resulta em exclusão e Babilônia o expõe pelo recorte da pergunta difícil de encarar: qual é o papel do artista e do intelectual na configuração presente de uma guerra civil permanente e não declarada? Como os interpelados não gostam de se dar por achados, texto e espetáculo mostram algumas formas de fugir da raia que, não por acaso, ilustram diferentes maneiras de praticar a lógica da guerra capitalista: nas relações pessoais, nos pequenos negócios e nos sonhos de inserção subordinada de intelectual-artista. A opinião do espetáculo sobre o que os tipos de que trata (uma cafetina aposentada, um travesti, um professor, e assim por diante) podem fazer na hipótese da integração (passada ou futura: o espetáculo é circular) ao show business é muito clara: nenhuma satisfação é mais possível, nem mesmo a erótica, pois tudo está sob o controle da indústria cultural.

Babilônia mostra que ninguém ali sabe onde está, nem para onde ir. O que se aprendeu não serve mais para nada, a não ser para chegar à mesma situação de sempre. O espetáculo não tem nada de afirmativo, é de uma radical negatividade. Da primeira à última cena, da primeira à última fala, afirma que nós só sabemos o que não queremos ser. Só estamos vendo a que ponto chegamos. Quem sabe, prestando atenção nas suas manchas escuras, nas coisas imprestáveis, acabemos descobrindo a moral da história.

Depois de vários outros experimentos, em 2007 o grupo encenou Orestéia, o canto do bode. Aqui combinou a reflexão sobre a história do Brasil e da América Latina com a análise crítica das condições de produção artística sob a dominação da indústria cultural. A saga dos atridas aparece entranhada na história de violência, golpes militares e golpes jurídicos que têm sido a marca da experiência latinoamericana desde sempre. O golpe jurídico final, nosso contemporâneo, está assimilado ao exercício do poder pela indústria cultural em sua versão mais opressiva que é a televisão. A pergunta continua a mesma: o que os artistas, principalmente os de teatro, têm a declarar numa situação como esta? Como a sugerir que a energia está se esvaindo, que o problema vem de muito mais longe do que temos consciência, e o teatro é parte dele, o espetáculo termina com o corifeu cantando, com um fio de voz, uma marchinha de carnaval que brinca com as máscaras da commedia dell’arte – Colombina, Pierrô e Arlequim, indicando também que o grupo quer discutir a relação que tem o teatro, tal como o conhecemos hoje, com toda esta história.

 

Engenho

O Engenho Teatral existe como grupo desde 1979 e tem este nome desde 1993, quando inventou seu próprio espaço, um teatro móvel com duzentos lugares que desenvolve o conceito do circo no plano da infra-estrutura. Tem salas de espera, banheiros, camarim, oficina, administração, cozinha e cabine técnica. Isto é, reúne condições técnicas adequadas à realidade brasileira e ao trabalho a ser feito, respeitando os profissionais e o público. Seus trabalhos dialogam com o público da periferia de São Paulo, onde costuma se instalar por períodos nunca inferiores a um ano.

As apresentações de Em pedaços tiveram início em 2005. É um desenvolvimento radical e muito pensado do trabalho anterior em confronto com a experiência junto a jovens praticantes do hip hop (entre outros moradores da periferia na zona sul da São Paulo). Um segundo ingrediente foram as cenas curtas – de “teatro de bolso” e “cenas de rua” – sobre diversos temas da barbárie numa cidade como São Paulo em eventos como festas, reuniões e debates. Eram intervenções de cerca de dez minutos sobre temas como a mercantilização do desejo, a distância entre os jovens e a produção literária e assim por diante.

O trabalho anterior, Pequenas histórias que à história não contam, expunha um artista em crise às voltas com o mundo da violência, exploração, onipresença da mercadoria, publicidade, proliferação de linguagens, técnicas de comunicação e programas populares de televisão. Na condição de narrador, o artista/intelectual acaba fazendo um inventário acidamente crítico de todos esses dados por meio dos recursos que hoje estão à disposição de quem queira fazer teatro: atores, cenário, figurino, iluminação, sonoplastia, computador (inclusive data show e tela gigante), vídeo, técnicas como fragmentação, parábola, flash, flashback e assim por diante. O ponto de vista, que faz toda a diferença, é o das vítimas do processo, como a jovem pobre que quer ser modelo e não dispõe nem mesmo dos recursos para se inscrever na corrida ao sucesso, a mulher que acredita participar do poder da indústria cultural por frequentar programas de auditório, o rapaz que descobre nas drogas o único modo de viajar ou a velha que enlouquece depois de atropelada pelos tratores que derrubaram a sua casa para abrir uma rua.

No experimento de Em pedaços o grupo abriu mão do aparato tecnológico, centrou a construção do ponto de vista no trabalho do ator e do conjunto (o ensemble) e abandonou os últimos vínculos com a narrativa dramática (enredo, personagem, ação dramática). Agora, o espetáculo faz perguntas e encena respostas. Os recursos básicos da linguagem e do jogo cênico são os da comédia popular (do boneco de ventríloquo à pancadaria) e os assuntos examinados vão das determinações da economia de mercado e do ritmo frenético da mercadoria às ilusões dos intelectuais sobre o valor da cultura (na figura da professora de escola pública que descobre quanto vale a “grande literatura” comparada aos sonhos de consumo dos estudantes), passando pelo desmentido cabal do fim da escravidão e da introdução do trabalho livre em país de periferia. O horizonte do espetáculo só pode ser o pesadelo provocado pela violência e a revolta do entorno.

Depois de desenvolver profundos estudos de história do Brasil, o Engenho estreou em 2008 o espetáculo Outros 500. Para começar a conversa com o público que forma a fila para entrar na sala, o elenco expõe – em fortíssima síntese crítica formalmente realizada através de agressiva cacofonia – o assédio da publicidade enganosa, que é interrompida por explosão cenográfica de bombas, codificada como a aproximação da barbárie. Elenco e público são convidados a entrar, onde estarão seguros. A ironia deste convite se traduz imediatamente pelo cenário de jaula dentro da jaula – eis o que o estado de coisas entende por segurança. Dentro da jaula, desenvolve-se a história do Brasil segundo a experiência dos trabalhadores (escravos, imigrantes, etc.), com o interesse voltado para a figura do malandro que, acreditando sempre na possibilidade de “se dar bem” pela via da adesão individual à regra do jogo, não percebe que não tem a menor chance e contribui para a manutenção da ordem. Simultaneamente, o espetáculo expõe os seus produtores – um grupo teatral que pertence ao “povo” – em uma crise que aparentemente só poderá ser resolvida se todos se recusarem a compactuar com a violência que impõe uma ordem cujos beneficiários têm sido sempre os mesmos, há quinhentos anos.

 

 
A Cultura da Servidão Financeira: Uma Leitura às Avessas
Maria Elisa Cevasco

 

Todos estamos familiarizados com a caracterização do nosso tempo, que alguns chamam de tempos da globalização como até ontem chamavam de pós-modernidade, como o tempo da derrota da esperança de um mundo qualitativamente distinto do que vivemos. O ano que vem será o aniversário de 30 anos da frase famosa de Margarete Thatcher, “Não há alternativa” Para qualquer uma das esferas da vida que se olhe, a palavra chave parece ser irreversibilidade: não se pode conceber a sociedade sem mercadorias, a vida sem os gadgets da tecnologia contemporânea, não se pode imaginar um outro tipo economia que não a predicada pelas pautas instituídas pela globalização, com os enormes custos humanos que esse modo de produção necessariamente acarreta. E o pior que todos sabem desse custo mas parecem incapacitados de imaginar outra forma da vida que não seja a da sociedade de consumo e das imagens padronizadas da indústria cultural. Como disse Fredric Jameson no prefácio a seu livro publicado em 1994,  As Sementes do Tempo: “Em nossos dias nos parece mais fácil imaginar a deterioração total do planeta e da natureza do que o final do capitalismo tardio, talvez isso seja devido a uma certa debilidade da nossa imaginação ”.

Essa conjuntura acachapante tem, compreensivelmente, encurralado os críticos do sistema. Os do meu campo, os da crítica cultural, tem seguido a prática que se pode chamar, seguindo o livro influente de Paul Ricouer de 1970, da hermenêutica da suspeita, buscando usar as ferramentas poderosas do desmanche das ilusões, que é legado da  melhor tradição de crítica cultural, para  fazer um diagnóstico dos  horrores das práticas culturais desses tempos sombrios.

No campo da crítica cultural marxista, a perspectiva fundante dessa tradição da  demonstração  dos horrores constitutivos da vida sob o capitalismo é a de Georg Lukacs em seu História e Consciência de Classe, de 1923. Como se sabe, é neste livro que ele dá mais um passo a partir da descrição poderosa do funcionamento do sistema no Capital de Marx e  mostra como as forças do capitalismo operam sobre os sujeitos, colonizando nossas  próprias consciências.  A noção chave de Lukacs,  a da reificação, parte da descrição  da forma mercadoria, em especial de  seu poder de operar uma equivalência geral no sistema de trocas, mercantilizando todas as relações sociais e escondendo, sob a  fatasmagoria do fetiche, as relações entre as pessoas que as produzem. Lukacs acrescenta aí  a descrição de Weber do processo da racionalização,  as dos processos produtivos que conhecemos como taylorização,  se estendendo até nossas próprias mentes. Assim o sistema deforma tanto o conhecimento e as artes que produzimos como os nossos próprios sentidos.  Lukacs apresenta aí uma exposição do caráter sistêmico da lógica do capitalismo, um processo que separa, compartimentaliza, especializa e dispersa, uma força que opera sobre todas as coisas e torna a heterogeneidade homogênea e padronizada.

É claro que a cultura,  como organização dos significados e valores de um determinado grupo social, como materialização da experiência do vivido é marcada por esse processo de reificação que ela a um só tempo incorpora, reforça e, para alguns, supera. Com História e Consciência de Classe está aberta  a rota para uma crítica da cultura que além da fazer os usual,  o comentário das grandes obra,  se expande para constituir  uma fenomenologia da vida cotidiana sob o capitalismo. É a partir daí que ela passa a diagnosticar os problemas  dessa forma de vida com o projeto claro de contribuir para mudá-la. Os  grandes temas da Escola de Frankfurt, como a fetichização dos  sentidos na crítica de Adorno, o empobrecimento da experiência em Walter Benjamin, a alienação promovida pela colonização do lazer pela indústria cultural, são legados fundamentais para entender o funcionamento da cultura em nossos dias. Resta acrescentar aí noções como a de sociedade do espetáculo, onde, como na formulação exata de Debord, a imagem se revela como a forma final da reificação. E ainda podemos falar em Baudrillard, cuja presença nesse elenco de marxistas pode ser mal vista, mas sua noção de simulacro, a cópia de uma imagem cujo original não existe, pode ser vista como o passo lógico seguinte no processo de desdiferenciação característico da vida danificada do capitalismo que agora abole as separações  fundamentais que norteavam nossos modos de pensar.  Não se distingue mais o real da imagem, e a imagem recobre tudo. Na formulação de Jameson, nossa modernidade singular se caracteriza pela penetração máxima da forma mercadoria em todas as esferas da vida, incluindo enclaves antes relativamente autônomos, como a natureza, e o nosso próprio inconsciente colonizado  e mercantilizado pela cultura de massas e pela indústria cultural. (p.12)

Uma das conseqüências para o plano das idéias desse estado de coisas pode ser resumido citando um dos maiores pensadores dos horrores desse estágio do capitalismo, Theodor Adorno que em Prismas avisa que “Não há mais ideologia no sentido próprio de falsa consciência , mas somente propaganda a favor do mundo, mediante a sua duplicação e a mentira provocadora, que não pretende ser acreditada mas pede silêncio. “P.25

No entanto a grande tradição do pensamento marxista nos ensina, desde o Marx do manifesto, a pensar o  desenvolvimento histórico e as mudanças sociais de forma dialética, ou seja, pensar o capitalismo como a um só tempo a catástrofe que representa mas também como progresso. O próprio Fredric Jameson nos insta a pensar esse novo tempo do horror a um só tempo positiva e negativamente. Segundo ele, é necessário que à ontologia do presente acrescentemos uma arqueologia do futuro, um modo de pensar que ajude a evitar a colonização total do que virá pela eterno presente da forma mercadoria.

Então, invés  de mais uma vez apontar o que todos já sabemos, queria, mesmo sob o risco de ser acusada de indevidamente otimista, para não dizer bocó,  escovar um pouco a história do presente a contrapelo e buscar formas do emergente no horror geral da cultura do desmanche. A inspiração teórica vem de Raymond Williams. Discutindo a questão central da hegemonia cultural, ele lembra que apesar de sua força avassaladora como porta voz dos valores vigentes, a cultura dominante tem que conviver com elementos residuais, que vem de outros tempos e emergentes, os que traduzem as forças da mundança. Essa convivência é a expressão cultural do fato de que nenhum modo de produção, por mais poderoso que seja, jamais conseguiu abarcar toda a ordem social ou esgotar toda a energia humana – e com isso, esclarece Williams, ele não quer apresentar um inventário das possibilidades idealistas da natureza humana, mas apontar que há na história da ações humanas, provas evidentes da variedade enorme que se estrutura nas contradições definidoras do modo do sistema. As práticas emergentes, que são muitas vezes cooptadas e neutralizadas, questionam as práticas usuais e apontam novos caminhos. É papel da crítica empenhada, além de diagnosticar os problemas da reificação triunfante, procurar desentranhas das práticas vigentes uma alternativa ao que existe.

Acredito que na cena cultural paulistana o teatro de grupo tem buscado formas alternativas de modo consistente e bem-sucedido. Muitos dos grupos estão na estrada há muitos e muitos anos,  mas adquiriram maior visibilidade quando se reuniram em um movimento coletivo a que denominaram ,com acerto, de Arte contra a Barbárie. O primeiro documento do movimento é de 1998, ano em que o Brasil completava seu embarque no modelo nocivo de modernização neo-liberal. Lembrando que a relação da cultura com a sociedade é bidirecional, ou seja, a cultura reflete a sociedade mas também deve dar à sociedade a possibilidade de refletir, o manifesto avisa que teatro não deve ser mercantilizado e demanda incentivos públicos para manter esse bem público. A resposta governamental foi pequena e tímida como sempre. Penso mesmo que há muito gente na própria área cultural do governo que comprou por inteiro a ideologia vigente que dá ao mercado a primazia sobre o pensamento: boa arte é a que vende bem, tem sucesso de público – como se o público não tivesse ele mesmo que ser formado e apresentado a maneiras outras de ver e pensar que não as da colonização mental da indústria cultural.

Quando se considera a resposta de incentivo oficial é um verdadeiro milagre que essas companhias existam e tenham condições de apresentar de manter um verdadeiro projeto de formação intelectual, uma construção em meio ao desmanche geral. Eu poderia falar da Cia do Latão, do Feijão, do Bartolomeu, da Oca Morana,do Folias D’Arte ou da União e Olho Vivo, da Companhia São Jorge, mas vou  falar do Engenho Teatral porque seu projeto concentra muito do diferencial que estou tentando marcar aqui. Para começar, o  grupo tem seu próprio teatro, uma bela estrutura de uma lona especialmente desenvolvida para o projeto, com lugares confortáveis para 200 pessoas. A sala de espetáculo tem a peculiaridade de poder ser transportada para diferentes lugares. A idéia é montá-la justamente onde não há teatros, como na maioria dos lugares da periferia de São Paulo. O grupo não cobra ingresso, e tem meios para levar alunos de escola pública, membros de movimentos sociais e religiosos, para seus espetáculos. Como se vê, trata-se de uma materialização de um projeto que se coloca a contrapelo de rigorosamente tudo que estrutura e, portanto, molda o teatro convencional.

Confesso que a primeira vez que fui ver um espetáculo do grupo lá pelos anos 90 foi imaginando ver uma ótima idéia ser desmanchada pela limitações dos que se encontram fora do circuito acachapante, mas muitas vezes profissionalizante, da cultural oficial: pensei: vou ver amadores, com o coração no lugar certo mas sem grande valor estético, para falar como minha corporação. Ledo engano: os atores são competentíssimos e se lançam com gosto na aventura de encenar um texto que é criação coletiva, sem a segurança fácil e enganosa de apresentar nomes consagrados pelo mercado das artes.

O último espetáculo da companhia, Outro$ 500, que encerrou sua temporada no Tatuapé dia 28 de setembro, é um ponto de chegada importante do grupo. O projeto  consumiu mais de dois anos de pesquisa e elaboração. A idéia é ambiciosa e se coaduna com o espírito da hermenêutica da suspeita que marca a melhor tradição crítica:  eles queriam tentar entender onde estamos a partir de um exame da história do Brasil desde o descobrimento. Coerentes com a tradição, eles buscam, para falar como Benjamim, escovar a história a contrapelo e, ao cortejo dos vencedores, opor o cortejo dos vencidos: a história é narrada do ponto de vista dos de baixo, os que movem os grandes ciclos da produção brasileira como descritos por Caio Prado. Vemos encenados o ciclo da cana, o do ouro, o da café e o da industrialização, cada  um moendo os homens e mulheres que os sustentam de forma específica. Como sabem que a identificação com as personagens e a estrutura do drama são instrumentos poderosos de deter a reflexão, o grupo usa de várias das técnicas de estranhamento que marcam o teatro político: vários personagens fazem o mesmo papel, não há linearidade de tempo, vemos primeiro o Rio de Janeiro da abolição e depois os ciclos da cana e do ouro, os gêneros teatrais se alternam: há momentos de drama, de narrativa épica, de metateatro, de reality show, de dança e de canto. O espectador nunca está seguro de que fio seguir.

Trata-se de uma montagem de choques onde cena ilustra cena e muitas vezes uma cena só adquire sentido na seguinte, por exemplo quando um atônito Zé Fênix, nome da personagem representante da gente humilde do Brasil, feita cada hora por um ator ou atriz e que perpassa a peça toda, entra em um caminhão desses que hoje aprendemos chamar de caminhão do gato que o leva que ao som de uma canção que diz “daqui para lá de cá pra lá, corre que corre”, para chegar na Minas do ciclo do ouro – o caminhão anacrônico só faz sentido em uma fala posterior do Zé “” “Vim da frente, já estava atrás, quando eu pensei que eu ia, eu fui…   mais prá trás.” A desdiferenciação do sofrimento no tempo fica então clara e configura um tema forte da peça, que não é tratado nunca do ponto de vista moralizante: não se trata de gente má que explora pobres bonzinhos trata-se da lógica do sistema, que vige desde o descobrimento, empreitada, como nos ensinam os historiadores, da expansão necessária do capitalismo europeu.

O estágio presente do capitalismo é o que abre e fecha a peça. A primeira cena se dá antes mesmo de entrarmos no teatro: na fila, os atores aparecem e nos vendem produtos e quinquilharias característicos das necessidades, inventadas mas nem por isso menos reveladoras, do capitalismo tardio: um nos oferece uma super consciência mega blaster  que é totalmente blindada e nos permite vender a mãe, trair os amigos tudo sem remorso. Ou então a marmelada high tech que arranja até aposentadoria de criança. A animação das vendas é interrompida por sirenes e uma gravação : “A Baderna está nas ruas. Entrem todos que a baderna voltou.” O atores entram e induzem o público a entrar também. A entrada no teatro produz o primeiro choque: toda a platéia,inclusive a entrada está cercada de grades. No centro, outra grande cela: no chão, ossadas e cabeças decepadas convivem com instrumentos de percussão. No meio desta cela há um barco com a proa quebrada, encalhado em um monte de ossos.  Ao lado uma enorme Pietá sombreada por um esqueleto que traz um  cifrão no peito. O mastro do barco é uma grande cruz.  Aí serão contados, cantados e dançados  os esplendores do cruzeiro do sul, interrompidos vez por outra pelos ruídos da baderna lá de fora – cada tiro que se ouve nos assusta e nos prepara para sermos acalmados pelo mestre de cerimônias que anuncia que lá estamos todos seguros, que a baderna não tem nada a ver com a gente, que show deve continuar. E trata-se mesmo de um show, onde os horrores contados contrastam com a beleza das músicas cantadas, com a pulsação da música africana batucada ao vivo  e enfrentando, em uma cena memorável, a música sacra da igreja católica, as danças, em especial a da linda atriz loira que no papel de escrava faz a dança comemorativa da festa da botada. Uma outra beleza vai se impondo:  vez por outra a luz se detém na cena e os figurinos e encenação formam um quadro de uma beleza plástica notável, que complementa as fotos históricas e o quadros projetados no fundo da cena. No final, quando os atores já estão de novo vendendo marmelada high tech,  entra um anúncio de televisão de que um toque de recolher foi decretado e vai começar uma higienização social. Os atores, como fizeram ao ouvir conosco os tiros, param para discutir se continuam ou não.  A posição conformista parece que vai vencer a discussão: afinal a higienização, diz um deles, não tem nada a ver com gente, e precisamos, lembra o outro, tomar conta da propriedade, o teatro do Demo que faltou na encenação .  As duas mulheres se revoltam e se dirigem para a saída, ao encontro da baderna. Na tela ao fundo, uma foto reproduz os atores no palco, ilustrando a imobilização que marca nossa falta de opções. Mas elas saem e batem a porta.

Claro que no nível primeiro da história que se conta essa saída mais levanta perguntas do que as responde: sair para onde? Por que só as mulheres? Sair em nome de que? Mas penso que essa saída pode ser lida como um gesto necessário de ruptura com o que é, gesto este que foi preparado pela montagem da peça. No meu resumo sumaríssimo da peça procurei ir mostrando como vai se estabelecendo  o que podemos chamar, seguindo a linguagem da crítica cultural, de contradição entre forma e conteúdo, entre a beleza que se constrói na encenação e os horrores que são contados. Não se trata de estetizar a opressão estrutural mas sim de fazer com que a demonstração dessa estrutura colida com uma outra linguagem, que insinua novas possibilidades. A peça não nega que esses horrores existam, ao contrário, mostrar o custo humano absurdo que esse sistema demanda é o seu assunto. Mas o seu modo de contar essa história nega que esse seja o único sistema possível. A plasticidade das cenas funciona como uma sombra, que emite a mensagem oposta à do conteúdo. Penso que o teor mais propriamente político da peça está justamente aí, nesse conteúdo latente de beleza que nega o conteúdo manifesto da história e dá seu outro lado. É à procura desse outro lado, cuja existência a ideologia vigente das inevitabilidades e da falta de alternativas nega, que saem as mulheres da peça.

Claro que os mais afoitos entre nós podem dizer, “ah mais aí  é pouco, cadê o programa, as diretrizes, o comando?” Ao que eu só posso responder: no momento como o nosso, em que a cultura do desmanche ao mesmo tempo replica, reforça e intensifica a lógica do sistema essa ruptura é um primeiro passo para mudar nossa imaginação política. O que virá depois depende de articulação e de movimentos. Resta ter esperança de que para isso não tenhamos que esperar mais 500 anos.

 

 

 

Outros - e muitos... tantos outros - Quinhento$:
Patifarias de um tempo ficcionalizado e apartado da História

Alexandre Mate

Meus gritos afro-latinos

Implodem, rasgam, esganam

E nos meus dedos doidos

A lua das unhas ganem

E daí?

Milton Nascimento e Rui Guerra.

O grupo Engenho, originalmente chamado Apoena, assim batizado por conta de processo de junção com outro grupo ocorrido em 1986, comemora, em 2009, 30 anos de formação. Em um país como o nosso, de tão ricas, mas desconhecidas tradições, e em que os grupos teatrais costumam ter uma vida muito breve, caracteriza-se em grande mérito esse longo período de existência, com a manutenção de repertório tão coerente. Formado em 1979, e com quatorze montagens apresentadas até agora, o grupo tem primado por denso processo de pesquisa e experimentação cujo resultado compreende aproximadamente um espetáculo novo a cada dois anos.

 

O último trabalho do Engenho, com direção e dramaturgia de Luiz Carlos Moreira, dramaturgia esta orientada em seus aspectos históricos sobretudo por Francisco Alambert, revisita momentos dos 500 anos de colonização do Brasil, tomando como protagonista nessa jornada uma alegoria do brasileiro chamado Zé Fênix: um renascido, diria eu, permanentemente perseguido. É disso que trata a obra, de recortes na história do Brasil apresentando Zé Fênix, cuja aparição se dá, às vezes, sozinho; às vezes, mulher; à vezes, oprimido; às vezes, opressor, mas permanentemente coro: formado por muitos diferentes e iguais a ele, em meio a tanta história do Brasil. Macunaímico e estrategista por natureza, para conseguir sobreviver, esse anti-herói aparece e desaparece em diversos momentos e ciclos econômicos oficiais de fatias de tempo brasilis.

 

Inicia-se o espetáculo em um prólogo, ainda fora do espaço de representação dito oficial, protagonizado por brasileiros-camelôs, em que tudo é vendido. O tudo refere-se àquilo só possível de ser oferecido e adquirido por intermédio de uma fuga contundente do real. Passam por nós, ainda na fila, vendedores de uma nova consciência, da facilidade em adquirir novos órgãos, de conversar diretamente com o criador etc. Depois de algum tempo de farra na fila, uma estridente campainha amedronta os camelôs que interrompem suas intervenções: anúncio de toque de recolher.

No espaço de representação uma cenografia surpreendente e absolutamente barroca. Domina o espaço central um barco carregando ou “invadido” por ossos. Esse barco não está inteiro, tem dois buracos por onde os ossos saem, ou por onde entram… Dentro do barco uma montanha de ossos; sobre eles, uma cruz enorme, na condição de personagem, domina todo o espetáculo. Recurso muito interessante, porque a cruz está fincada permanentemente entre aqueles que fazem uma viagem no tempo (as personagens da obra) e as imagens projetadas em um grande telão, ao fundo para os espectadores. De outra forma, a cruz, na condição de símbolo ou marco indiciático – que demanda, sobretudo um comportamento repleto de culpa e de subserviência – interfere na apreensão dos documentos visuais da história: a cruz interpõem-se em nosso modo de ver. O espaço de representação é sufocante, e encontra-se aprisionado (assim como nós pelo toque de recolher) por grades com mais de três metros de altura, segregando os atores do público. Inúmeros objetos e adereços heteróclitos, mas de natureza repressiva: muitas imagens de mulheres nuas e de figuras religiosas; pia comum ou batismal; uma Pietá sustentando seu filho: manipulando ou sendo manipulada por uma imagem cadavérica, referenciada em personagem muito parecida de intervenção do grupo de teatro de rua norte-americano Bread & Puppet; diversas cangas com cabeças escalpeladas; bonecos de panos; muitos objetos assemelhados a objetos de tortura dos escravos; todo o figurino dos atores e adereços diversos. O cenário de Luiz Carlos Moreira constrói uma narrativa muito interessante, que sofre, ao longo do espetáculo, diversas mutações ou ressignificações por surpreendentes efeitos de luz.

Apesar de o cenário ser carregado de muitos objetos, os seis atores da cena apresentam as inúmeras personagens, dos mais de quinhentos anos compreendido pela narrativa, em uma espécie de passarela circular, tendo o barco ao centro e os diversos adereços espalhados pelo chão, junto à grade. Os atores em Outros quinhento$ ganham condição de essencialidade: o diretor não os submete a uma “concepção genial”, que tem sido tão comum no teatro paulistano ultimamente. Os atores aparecem como seres vivos, inventivos, e que interferiram no processo de criação: são essenciais e estão integrados ao espetáculo. Todo o cenário, em seus diversos nichos e na passarela circular, permite as boas performances do elenco e transforma-se: em uma terreira para práticas de ritos africanos; em praça para venda de escravos; em espaços de protestos, de comícios, de cabala; em capoeira [de-machado] para plantação de cana de açúcar; em arena de enfrentamento político, em pódio de disputa para as discussões entre os atores do espetáculo… Espaço para revisitação de uma versão que teima em apresentar certa história do Brasil, que nos tem sido mostrada, imposta, sacralizada. A demonstração de tudo o que se passará nas próximas duas horas não ser verdade fica demonstrado por uma das atrizes que, ao bater com uma bengala em grade de ferro, afirma: “Aqui tudo é ficção.” De acordo com teoria brechtiana, trata-se de um gestus que, nesse caso, indica uma contradição entre o falado e o mostrado. Tal expediente pede uma atenção especial, no mínimo de desconfiança, em relação ao que virá. Aliás, Luiz Carlos Moreira e todo o elenco criam um significativo repertório deles ao longo da obra.

O espetáculo inicia-se com a apresentação da trupe, tendo ao fundo a Protofonia do Guarani, de Carlos Gomes. Nesse primeiro, sem que os motivos fiquem claros, os atores afirmam que o espetáculo será apresentado com dois atores a menos. Múltiplas são as leituras pertinentes a partir desse indicativo, ampliando-se ainda as possibilidades  interpretativas quando se lembra da sirene do início do espetáculo. De qualquer modo, encontramo-nos todos em um teatro, apartados, de certa forma, da vida social, mas, por diversos índices apresentados no espetáculo, sem que nos esqueçamos da vida lá fora. O espetáculo será apresentado, afirma alguém, levando em conta que a História se caracteriza em um processo de (re)invenção do passado, no presente. Isto posto, e tomando os ciclos econômicos brasileiros, o que apresenta um recorte de natureza marxista, a narrativa cênica passa a ser revelada.

Na tela, principalmente por intermédio de imagens de Debret e, salvo engano, outras de Rugendas, o público é conduzido ao Rio de Janeiro do século XIX. De modo absolutamente farsesco e delicioso, um impagável escravo: já como Zé Fênix (formando um coro), vende uma “negra encalhada”, ganhando dinheiro de seu próprio dono. Esse achado é surpreende e revela tanto a ausência de reconhecimento de um seu semelhante como a malandragem de um grupo de sujeitos que é induzido ao acatamento de certas táticas de sobrevivência. Na ação, sem tomar partido, evidencia-se a ausência de certo e arquetípico comportamento que caracterizaria, em certas situações, o chamado homem cordial. Antes de ser colocada à venda, a negra, feita deliciosamente pelo ator Ney Rodrigues, é colocada à frente da Pietá e da imagem que representa a morte, formando um totem surpreendente, na condição de imagem-narrativa. Antes do desdobramento da cena, a música, com função épica, apresenta loas à libertação. Ironias do destino: um negro paga, com muita dificuldade, sua alforria, assinada em 12 de Maio de 1888. Ao ser avisado do edito exarado do palácio pela Princesa Isabel (paródia da situação brasileira: homem livre em sociedade escravocrata), o forro apanha de capangas de seu ex-senhor. Em alusão popular, a personagem ludibriada leva bastonadas de um coro formado por vários outros Zé Fênix(is).  Enfim, de modo farsesco, o século XIX nos é apresentado como um período de ludibrio, de salve-se quem puder, de quem pode mais chora menos.

Em novo recorte, a narrativa desloca-se para o ciclo da cana de açúcar. A tela prioriza a imagem de muitos capitães do mato, embalada por lírica canção pelos atores. Um tiro ecoa lá fora. Um terror momentâneo dos atores. Espectadores são acordados da cena, sempre induzidos a pensar no lá fora. Na cena, o sincretismo se mistura a uma tentativa de fuga. Em mais uma ironia da história, pela materialidade dos desejos de alguns dos amotinados, a cena apresenta em Keto, um Ponto do Candomblé cantado por Xangô: “Ozaziê, Ozaziá, Ozaziê maiambolê, maiambolá” (e a atriz Danielle Salibian está deslumbrantemente bela e bem na cena), a aguardente, a carne sexualizada, não se cumpre, do modo idealizado, a fuga dos escravos. Nova e deliciosa cena de deboche explicitado: no processo de unção, um determinado padre benze, com pompa os ricos e, literalmente, posto que obrigado, joga a água benta na cara dos pobres. Apresentando o fazendeiro, dono do Engenho, um-tal-senhor-português-como-tantos-oitros, André Mürrer está impagável, “dilicioso.” Em nova ironia da história, um escravo forro, caçado por um capitão do mato, mostra sua carta de alforria, sem validade alguma posto que assinada duzentos anos depois.

Novo recorte, agora nas Minas Gerais, o ciclo do ouro se anuncia e presentifica-se. Um coro de anjos business recebe o Zé Fênix, morto anteriormente. O coro, de modo bastante amestrado, espetaculariza a vida (mas como, se já estão todos mortos???) faz apologias ao progresso, buscando cooptar Zé Fênix. Caído na terra, Zé pela sedução e pelo medo rouba algum ouro, escondendo-o no cabelo, comendo-o para cagá-lo depois. Descoberto, Zé Fênix é induzido a defecar o produto, dão-lhe quilos de pimenta malagueta. O efeito da malagueta é devastador, Beto Nunes, cômico surpreendente, está assombroso!!! Nessa cena, há um outro tiro vindo de fora. Tal expediente induz à percepção do próprio público. Assisti ao espetáculo em uma muito, muito fria noite de sábado: na platéia, um pouco mais de 70 pessoas, absolutamente atentas ao espetáculo. Ligadas ao trabalho.

Novo recorte da história, início do século XX, em São Paulo, o ciclo do café. Zé Fênix, vendo como eram “acolhidos” os imigrantes (italianos, japoneses, portugueses, espanhóis), se multiculturaliza para ganhar um pouco de comida. Em nova cena, por intermédio de narração, se apresenta a fuga e o processo de amotinamento dos colonos estrangeiros escravizados nas fazendas de café. Outro recorte, e já na cidade, uma cena bastante lírica, com muitas velas por entre as barras das grades iluminam a cena. acesas, apresenta-se o velório e o discurso de um velho anarquista: Jose Antonio Martinez. Cena bela, emocionante em que Irací Tomiatto faz o velho anarquista sapateiro, magistralmente. Segue-se a esta cena, e em paralelidade, os discursos do grande ator performático Celso Cardoso, apresentando Getúlio Vargas e Luís Inácio Lula da Silva: ambos, cada um a seu modo, representantes de Estados Novos, ainda que em tempos diferentes. A junção das duas cenas: do velho anarquista e do comício, sobretudo pela beleza visual e interpretativa, “empalidece” a posterior. Procedimento épico é verdade: do lírico ao cômico, mas a seqüência não resulta interessante, chega a criar uma um prenúncio de barriga. Possivelmente, se a cena de contratação do pião de obra estivesse entre as duas anteriores ou uma nova inserção musical – sempre impecável (apesar da banda gravada… Não está na hora de os atores e atrizes do elenco aprenderem a tocar instrumentos de corda e de sopro??!) – pudesse “dar conta do problema”.

O quadro final traz ao templo, os tempos do Grande Irmão televisionado: a espetacularização chega ao espetáculo misturando a droga da Xuxa e a esculhambação total dos rialiti xou. Zé Fênix terá de esperar mais 500 anos. Esperar e dançar; dançar e acompanhar o humoradíssimo bordão: “Quem não trabalha comem…” Zé Fênix é elevado à condição de indivídu[l]o… e duela a quem duela!!! Indivíduo high tech. É mercadoria integrada ao sistema! De pequenas frestas (recurso muito interessante e bem resolvido como metáfora e como teatro) é saudado, é mais um soldado no processo de higienização e progresso. Em off, o grande irmão (por intermédio de voz feminina) recomenda a vida sitiada, ensimesmada. Os atores (grande elenco) radicalizam a discussão que vem desde o início: a espera ou o enfrentamento da vida lá fora. O impasse leva à cisão: aqueles que optam pelo enfrentamento, em imagem congelada reproduzindo a cena, ficam de costas para a platéia… Afinal, articulando o final ao começo, ou vice-versa: aonde está a ficção?

Espetáculo cujo trabalho é apreensível: digno, criativo e engravidado por um coletivo que se faz inteiro e chega ao público de modo a que se pense, se divirta, se redimensione o ficcional e o real… Enfim, temos aí um espetáculo generoso e criativo, espetáculo que propõe um real troca de experiência. Oba!

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